Preside ao Conselho Português para o Cérebro e dedica toda a sua vida profissional à neurologia. António Freire Gonçalves é o nosso Convidado Especial deste mês, coincidindo com a efeméride do Dia Mundial do Cérebro, a 22 de julho.
Com sede social na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, o Conselho Português para o Cérebro reúne sociedades científicas, especialistas, grupos profissionais e associações de doentes e seus familiares, com interesse comum no estudo e na assistência na área do Sistema Nervoso.
Nesta entrevista, António Freire Gonçalves contagia-nos com o seu fascínio pelo cérebro, cuja atividade descreve como uma “sinfonia perfeita”. E deixa um lamento: a investigação científica tem sido considerada um parente pobre em Portugal.
O CPC tem como objetivo principal a promoção da investigação e do conhecimento na área do Sistema Nervoso e a preocupação de divulgar a toda a sociedade informação relevante sobre os avanços em Neurociências. Pretendemos, por outro lado, aproximar as várias sociedades científicas ligadas a esta área, juntando, deste modo, vários saberes e experiências.
O CPC está, também, muito empenhado no apoio aos doentes, em colaboração estreita com as associações que os representam, procurando responder às suas preocupações e promover as melhores condições assistenciais a quem sofre estas doenças. É uma preocupação que nos acompanha desde o início, razão porque queremos estar próximos dos doentes – são eles e as suas dificuldades que nos movem. Sem nunca esquecer a investigação que vai permitir um melhor conhecimento da doença e dos seus mecanismos moleculares possibilitando, assim, uma melhor resposta às necessidades dos doentes.
Eu diria que o investimento feito na nossa área é muito baixo para as necessidades e as capacidades do nosso país. A escassa aposta na investigação científica é transversal a todas as áreas da investigação e, como tal, também é evidente na área das neurociências.
Muita da investigação que é feita em Portugal deve-se à boa vontade de investigadores que exercem a sua atividade com vínculos precários às instituições onde trabalham ou que sobrevivem graças a bolsas conseguidas em concursos extremamente competitivos.
A nossa Academia forma pessoas altamente qualificadas e temos investigadores com um elevado nível científico que são depois captados por outros países da Europa ou mesmo pelos Estados Unidos e pelo Canadá, porque não temos capacidade para os colocar. Toda a despesa da formação é nossa, mas o fruto desse investimento vai reverter para esses países. Apesar destas limitações e das dificuldades daí decorrentes, a investigação em neurociências tem conhecido um percurso notável e um reconhecimento generalizado a nível internacional.
Infelizmente não. A precariedade é elevada mesmo entre investigadores já com 50 anos ou mais e que deveriam ter uma situação laboral estável nesta fase da vida. Custa-me muitíssimo ver pessoas de altíssima qualidade científica e profissional sem o suporte dessa estabilidade, sem direitos laborais básicos.
O investimento em investigação em Portugal continua inferior a 1,4% do PIB. Devíamos aproximar-nos rápida e urgentemente dos 2% do PIB, o que ainda assim não seria suficiente para tornar a nossa investigação competitiva.
A investigação tem sido considerada um parente pobre, tal como a arte e a cultura. Investir na investigação e no ensino é fundamental para o nosso país. Precisamos de maior financiamento e de uma maior aproximação dos centros de investigação académicos ao setor privado, às empresas. Os centros de investigação têm de colaborar mais estreitamente com as empresas, com quem produz e com quem tem ideias claras sobre as necessidades dos mercados e sobre os meios de produção.
No fundo, precisamos de aproximar os investigadores ao mundo real. Porque a investigação só tem sentido quando é útil à sociedade, às suas necessidades.
É absolutamente fulcral investir mais em ensaios clínicos, até porque nós temos esse ‘know how’, e há que reconhecer o papel importante que a Roche tem desenvolvido no nosso país. Contudo, continuamos a ser um dos países da Europa com mais baixa taxa de participação em ensaios clínicos.
Creio que a nível hospitalar não tem havido a preocupação necessária para captar ensaios clínicos e agilizá-los. Nós temos profissionais competentes e doentes que colaboram muito bem nestes estudos. Mas é necessário e urgente criar estruturas de suporte a nível hospitalar e uma organização nacional capaz de atrair mais estudos clínicos.
E sublinho que os ensaios que decorrem em Portugal correm muitíssimo bem e com significativo número de doentes recrutados.
Primeiro, gostava de sublinhar que temos lutado, interna e externamente, para que o cérebro não seja esquecido nas políticas de investimento na investigação e na saúde. Esta preocupação é assumida, também, dentro do European Brain Council, associação europeia que integramos com conselhos de outros países europeus.
Em resposta à sua questão, devo dizer que os últimos 30 anos foram de uma evolução extraordinária no conhecimento do cérebro.
Em três décadas deu-se um salto gigantesco nesse conhecimento. As tecnologias que foram surgindo, e que são obra do cérebro, como a ressonância funcional, permitiram conhecer o cérebro em pleno funcionamento. É possível, hoje, graças a estas técnicas, observar uma pessoa a falar, a pensar, a sonhar, a exercer qualquer outra atividade e identificar quais as áreas do cérebro que estão a ser ativadas. Por outro lado, com as novas técnicas de laboratório, tem sido possível conhecer os mecanismos moleculares do funcionamento celular e as suas alterações em muitas doenças.
Em suma. Conhecemos cada vez mais do cérebro, mas ainda há muito por descobrir.
A terapêutica da esclerose múltipla teve uma evolução enorme, por exemplo. Há 30 anos, não havia, praticamente, opções para o tratamento da doença. A evolução científica veio permitir melhorar muito a vida destes doentes, graças ao desenvolvimento de múltiplos fármacos com ação modificadora da doença.
Noutras áreas, como a Doença de Alzheimer ou Parkinson, o conhecimento das bases moleculares associadas a estas doenças tem avançado significativamente. Mas ainda não ao ponto de conseguirmos tratamentos curativos para estas doenças. Há que continuar a investir na procura de novos fármacos para estas e outras doenças
Diria que o conhecimento do cérebro, do ponto de vista estrutural, teve uma evolução espetacular, com a neuroimagiologia, a neuroquímica, a neurobiologia e a genética, entre outras, a possibilitarem avanços muitíssimo significativos e a dar um enorme contributo à ciência. Estes avanços permitem-nos acreditar na descoberta de novas terapêuticas para estas e outras doenças.
Falo como neurologista. Os psiquiatras, têm, obviamente uma perspetiva diferente. Diria a esclerose múltipla, por ser uma doença que atinge pessoas mais jovens; a Doença de Alzheimer pela sua prevalência e peso na sociedade, bem como a Doença de Parkinson; e também a doença de Huntington e a doença de Machado-Joseph.
Estas duas últimas são muito mais raras, mas a descoberta dos mecanismos moleculares e terapêuticos nestas doenças pode ser muito útil no estudo e intervenção de outras doenças degenerativas. Mas todas as doenças, nomeadamente as doenças mentais, merecem a nossa aposta – não pode haver discriminação na saúde.
O cérebro é a mãe de todas as coisas. É a sede do saber e das emoções. Todo o nosso organismo é cérebro: a pele, o cabelo, o estômago, o coração, os músculos... todos têm ligações íntimas ao cérebro e é o cérebro que comanda e coordena toda a sua atividade. E “lê”, relaciona e faz a análise de todos os estímulos visuais, auditivos, da pele e outros que recebe e tem a capacidade de, reunidas e tratadas essas informações, ir criando e inovando.
Não podemos dizer que é um órgão tão pequeno, porque ele está em toda a parte, como disse. No fundo, o cérebro tem a dimensão do nosso corpo. E são aproximadamente 85 mil milhões de células numa execução superior, num desempenho perfeito.
O funcionamento do cérebro pode parecer anárquico, mas é de uma perfeição absoluta. A atividade cerebral é uma sinfonia perfeita. O modo como se desenvolve, como funciona, como faz acontecer, levanta ainda muitas interrogações.
Enquanto Sociedade, de modo genérico, e também em termos políticos, julgo que tratamos mal o cérebro, na medida em que não criamos às populações condições de alimentação, saúde e educação que possibilitem que o cérebro seja bem tratado de modo a poder desenvolver todas as suas potencialidades.
Há, lamentavelmente, uma grande assimetria nas sociedades em geral, com muitas pessoas que ainda passam fome, ou que não têm acesso à saúde e à educação.
Seria, penso, mais importante investir aí, no bem-estar das pessoas, melhorando o acesso à alimentação, à educação, ao ensino e à saúde do que em qualquer outro campo.
Sem estes aspetos sociais resolvidos, não conseguimos, enquanto sociedade global, tratar bem o cérebro.
Todos nós tendemos a menosprezar um aspeto muito relevante: é preciso exercitar o nosso cérebro. É necessário ler, ver bons filmes, conversar, debater, acompanhar os movimentos artísticos, ouvir música, socializar. E nunca parar com a aprendizagem. Devemos viver em constante aprendizagem, que é a melhor forma de exercitar o nosso cérebro.
Na nossa sociedade, estamos, individualmente, muito focados no trabalho e na progressão na carreira. Mas não podemos ser só máquinas de trabalho. O lazer, o convívio, a cultura, a música, o exercício físico são, repito, importantíssimos para o cérebro.
Citando Peter Atkins, só há dois grandes mistérios por resolver: a natureza da Consciência, e a origem do Universo.
Essas são as duas grandes questões que temos para responder, todas as outras são pequenas ou médias questões, ao alcance do cérebro, que as vai decifrando a cada dia que passa.