A evolução da ciência e dos tratamentos mudaram radicalmente o paradigma de uma das mais incapacitantes doenças genéticas raras. A Atrofia Muscular Espinhal (AME) conheceu nos últimos anos uma transformação completa de panorama.
A Atrofia Muscular Espinhal é uma doença genética rara, progressiva, que retira força física às pessoas, podendo afetar a capacidade de andar, comer e até de falar. Apesar de rara, é a principal causa genética de morte em bebés. É sobretudo diagnosticada durante a infância, mas pode afetar pessoas com qualquer idade.
O neurologista Luís Braz percorre, nesta entrevista, os caminhos e conquistas recentes na AME, que estão a permitir inverter a história natural de uma patologia antes devastadora.
Médico no Centro Hospitalar Universitário de São João e membro da Direção da Sociedade Portuguesa de Estudos de Doenças Neuromusculares, Luís Braz tem feito um percurso profissional muito ligado às doenças neuromusculares, como a Atrofia Muscular Espinhal.
Já estamos a assistir a uma redução. As medicações que alteram o curso natural da doença começaram a ser administradas em Portugal em 2019 e nessa altura não era possível capturar realmente nenhuma modificação. Agora, nós já temos medicações que estão a inverter a história natural da doença, ou a modificar a história natural da doença. Portanto, as mortes precoces e o número de anos perdidos pela doença já estão a ser consideravelmente menores. Mas ainda não temos tratamentos que curam a doença.
Se fosse feito agora um novo estudo, já notaríamos uma redução. E se daqui a 20 anos fizermos uma nova análise, estou em crer que teremos um panorama radicalmente diferente.
Até porque as pessoas com as formas mais graves desta doença não chegavam à idade adulta e muitas nem sequer chegavam à adolescência.
É sem dúvida uma mudança de paradigma. Primeiro, recordemos que a Atrofia Muscular Espinhal é a primeira causa de mortalidade infantil por doença genética, apesar de ser uma doença rara. Nos doentes pediátricos (em que a doença se manifesta nos primeiros meses de vida), a mudança com as novas terapêuticas foi absolutamente drástica. Muitos destes bebés não se sentavam, não andavam e morreriam até aos dois anos de idade. Agora, além da sobrevivência, podem ambicionar ter uma vida com um padrão com alguma normalidade.
A mudança pode não ser tão drástica, mas é também muito relevante. Obviamente que nos doentes adultos havia já muita incapacidade instalada
A mudança não é tão drástica porque há obviamente muita incapacidade e dificuldade física já acumulada. Na globalidade dos adultos, os recentes medicamentos impedem uma deterioração e permitem uma estabilização, possibilitando algum grau de autonomia e até de realização profissional e social que se pode manter durante décadas.
Muitos destes doentes adultos são ativos profissionalmente, trabalham e contribuem para a sociedade com os seus empregos. Esta ideia de estabilização da doença é muito relevante, permite manter uma vida profissional ativa e até planear a vida pessoal futura, como pensar em ter filhos. São escolhas fundamentais de vida.
Temos estimativas por dados epidemiológicos internacionais e, portanto, podemos fazer uma extrapolação. Sabemos que por cada 100 mil bebés que nascem seis terão a doença. Serão em Portugal cinco novos casos todos os anos. Isto é a incidência, não sabemos a prevalência, que é quantos doentes existem neste momento.
Está a começar a ser feito um registo, com o patrocínio da Sociedade Portuguesa de Doenças Neuromusculares, que está a ser expandido a todos os hospitais. Com o objetivo de fazer a caracterização epidemiológica e clínica real da doença.
Temos de saber que estamos a falar de Atrofia Muscular Espinhal e não de outra doença neuromuscular, primeiro. Para termos ideia da real dimensão do problema, que é o acesso aos cuidados e às terapêuticas inovadoras, por exemplo. O objetivo final é permitir um melhor acesso aos cuidados. Por isso, um registo é essencial até para prepararmos consultas específicas para estes doentes, com médicos especialistas nesta área concreta.
Serão seguramente menos de 50, espalhados por Portugal Continental e ilhas. Portanto, não são muitos.
Esta doença é de tal forma incapacitante, sobretudo sem tratamento, que estes doentes acabam quase sempre por recorrer a cuidados médicos.
O que aconteceu durante décadas é que sem tratamento modificador da doença, alguns doentes não percebiam a utilidade de ir ao hospital e acabaram por abandonar cuidados. Mas isto não é um fenómeno exclusivamente nacional, aconteceu em vários países.
Com o advento das novas terapêuticas e com maior informação por parte de profissionais e de cidadãos, alguns doentes acabaram por regressar às consultas, esperançados com os novos medicamentos e com a perspetiva de melhor gestão da sua saúde.
A diferença, para os doentes adultos, está entre manterem uma vida com alguma qualidade, ainda que adaptada, ou irem perdendo gradualmente essa capacidade, que era o que aconteceria se estivessem fora do radar dos cuidados de saúde.
Sendo uma doença dos neurónios motores, incapacitante e que gera dificuldades físicas, como a usar os braços ou pernas, na fala e deglutição com mais dificuldade, a neurologia será sempre a especializada centralizadora dos cuidados.
Mas manifestações práticas devem ser combatidas multidisciplinarmente, por uma equipa de vários profissionais de saúde, em que o doente está sempre no centro, claro. Além do neurologista ou neuropediatra, também do pneumologista e do ortopedista, são essenciais outros profissionais não médicos, como enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas da fala ou assistentes sociais.
As caraterísticas da AME, em que há muitas questões práticas que têm de ser encaradas, não tornam exequível que seja apenas um profissional de saúde a cuidar de um doente.
Claro que não conseguimos ter estas equipas multidisciplinares especializadas para esta doença, que é uma patologia rara, em todos os hospitais do país. Por isso, diria que convém haver alguma centralização dos cuidados, para que sejam prestados da melhor forma possível.
Sem dúvida, mas a meu ver ainda não tanto quanto devia. As pessoas já se informam bastante, seguem grupos e comunidades de doentes e já não é incomum partilharem com os profissionais a informação que consultaram.
Penso que é um caminho a continuar, sobretudo na procura e exigência de cuidados de saúde que satisfaçam as suas reais necessidades. Todos os doentes que não tenham acesso a cuidados de que precisam – fisioterapia, terapia da fala, aconselhamento genético, seja o que for – devem questionar, perguntar por esses cuidados.
Além disso, cabe aos doentes darem conta das suas reais necessidades, que muitas vezes podem não ser as que são percepcionadas genericamente pelos médicos ou profissionais de saúde.
Julgo ainda que a AME pode ser encarada como um paradigma para outras patologias no que toca ao acesso à informação. A projeção que a doença ganhou nos últimos anos permitiu aos doentes acederem a muita informação, aumentando o conhecimento de todos dentro e fora do sistema de saúde.
Outras doenças necessitariam da mesma atenção, como a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), uma doença também dos neurónios motores, que é incurável e terrivelmente fatal. Precisa muitíssimo de atenção acrescida pela sociedade, pese embora o grande trabalho já feito por algumas organizações de doentes como a APELA.
Muito já foi feito neste caminho, nem sempre fácil. Temos muito conhecimento e expertise, começamos também já a ter tratamentos menos invasivos, até de administração oral.
Creio que precisamos agora de trabalhar a parte do acompanhamento destes doentes. Necessitamos de melhorar o acompanhamento dos doentes adultos, que mantêm alguma incapacidade, ao nível da fisioterapia, por exemplo.
Penso que neste momento esta será uma das maiores fragilidades no nosso país, porque temos poucos profissionais diferenciados no Sistema Nacional de Saúde. Precisamos compreender que o acesso a cuidados multidisciplinares (inclusive fisioterapia) é essencial nos doentes neuromusculares e nos doentes com AME.
No campo de novas terapêuticas, podemos ambicionar, num futuro, dar o salto para outro tipo de tratamentos que almejam reverter a incapacidade já existente e não apenas impedir a sua progressão
Mas até aqui já fizemos um longo e importante caminho, travando a progressão da doença, mesmo nos doentes adultos com alguma incapacidade já instalada.